"Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever eu me morreria simbolicamente todos os dias" (Clarisse Lispector - A Hora da Estrela)

quinta-feira, 31 de março de 2011

A mulher dos olhos tristes

Uma vez, há muitos e muitos anos, tá nem tantos anos, uns oito eu acho, uma senhora que trabalhava com tear e se chamava Nicole me disse que eu era "A garota dos olhos tristes". Aquilo me atingiu de uma forma tão negativa que eu quis voar no pescoço dela. Quem ela pensava que era pra me criticar? Acho que ela leu nos meus olhos transbordantes de tristeza, que naquele momento eles escreviam ira com letras bem apertadinhas entre as pálpebras lacrimejantes. Então ela me levou pra dentro do seu ateliê, começou a tecer um cachecol braco com alguns fios coloridos e me pediu que sentasse ao seu lado. Impaciente que sou disse que estava com pressa, mas ela me convenceu que não iria demorar. A quem ela queria enganar? Estava tecendo em seu tear aquele projeto monótono de passar a linha, descer, apertar, subir, passar a linha de novo, descer, apertar, subir, desenroscar a linha embramada, passar a linha, descer, apertar, subir. Eu iria provavelmente dormir durante aquele ritual estupidamente infundado pra minha cabeça. Como pode uma pessoa perder três preciosas horas dos seu tempo só por conta de um cachecol?
Nicole tinha os olhos verdes que me olharam e fizeram minha mente voltar do transe que me causava os movimentos das mãos no tear. E ela tinha os dedos muito ligeiros e treinados, porque não parou de tecer nem de me olhar enquanto falava comigo.
Ela disse que não queria me criticar nem ofender ao dizer que eu era pra ela a garota dos olhos tristes, e sim que aquilo devia me servir como motivo de orgulho, porque em tantos e mais tantos anos de vida ela nunca tinha visto olhos tão expressivos e sombrios ao mesmo tempo. Me disse ainda que eu podia ver além do corpo, ver o coração, a alma, disse que poderia transmitir sentimentos e emoções de uma maneira particular que talvez conseguisse atingir as pessoas, e que ao mesmo tempo, parecia que estava constantemente guardando algo muito secreto e misterioso nos olhos. Disse que poucos conseguiriam me enxergar realmente, poucos compreenderiam o que meus olhos queriam dizer, e que eu talvez sofresse muito por me sentir incompreendida e diferente, mas que meu mundo era sim este, e que todos temos nossas missões e um dia eu iria encontrar a minha, e com certeza ela seria moldada em sólidas bases onde eu me manteria firme e forte, sem mais ilusões ou incertezas.
Me entendam, nada daquilo fazia sentido naquela época. Eu era só uma adolescente que tinha medo de velhas loucas e se sentia sonolenta e embriagada com os movimentos de um tear. Mesmo assim eu não fui embora, eu ouvi cada palavra que ela me disse e gravei num canto da minha mente, que hoje resolveu sair à tona.
Agora talvez eu entenda o que ela quis dizer com eu ser a "garota dos olhos tristes", já a mulher dos olhos tristes, por favor, e não acho mais que isso seja ruim. Hoje cedo me olhei no espelho e meus olhos enxergaram a mulher que a muito tempo eu procuro, a mulher que não abaixa mais os olhos pras pessoas, que não esconde mais o que pensa nem o que sente.
Nicole terminou o cachecol e o discurso. Me entregou a peça lenta e lindamente tecida e disse que era um presente pros meus olhos tristes e pra eu não me esquecer que o que nos é dado deve ser sempre bem usado. Nem que seja uma expressão.
Alguns meses depois a senhora saiu da cidade e eu nunca mais a vi. Engraçado como uma desconhecida velha louca me fez sentir a adolescente mais feliz do mundo, mesmo sabendo que o motivo da felicidade era a tristeza dos meus olhos.

2 comentários:

  1. Aconteceu mesmo? parece coisa de filme, que aquela senhorinha cheia de sabedoria vira a melhor amiga da menina, e depois morre no fim.

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  2. Se eu te disser vai perder todo o mistério do concreto ou abstrato não é? E não seria essa minha intensão? Tornar o irreal tão parecido com a realidade que confunda e intriga e deixar o real tão absurdo que ninguém acredite na possibilidade de aceitar. O importante é saber que na imaginação tudo pode ser verdade. Beijos!

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