"Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever eu me morreria simbolicamente todos os dias" (Clarisse Lispector - A Hora da Estrela)

terça-feira, 12 de abril de 2011

Antonieta

Todos os dias, exatamente às 14h30min na repartição, Antonieta ajeitava a gola da blusa listrada, ou xadrez, ou bordada à mão pela tia Helena e fazia uma pequena pausa nos arquivamentos de fotocópias tiradas naquele dia para tomar um cafezinho, que na verdade era chá de cidreira, mas ela dizia que era um cafezinho porque sentia vergonha que as pessoas soubessem que ela tomava chá de cidreira todos os dias porque sua tia Helena a convenceu que tomar chá de cidreira todos os dias seria mais útil pro seu caso de depressão e ansiedade do que gastar dinheiro com terapias auxiliares. Ninguém imaginava na repartição que Antonieta tomava chá todos os dias porque sofria de depressão, (o chá deixava vestígios na pequena cozinha). Antonieta aparentava ser uma pessoa extremamente calma e dócil. Mal conversava com as pessoas e não tinha costume de olhar nos olhos. Sua função era a mais idiota e menos remunerada entre os 200 funcionários e considerada a mais inútil também para uma repartição tão pequena. Ela era a moça da maquina de cópias. Assim que todos a conheciam: ‘a moça da copiadora’. O dia em que o chefe, Seu Carlos percebeu que os funcionários perdiam tempo demais tirando cópias e muitos não sabiam direito colocar o papel que ficava sempre enroscando, ficou decidido que a máquina era preciosa demais pra ficar na mão de tanta gente e merecia um responsável pra tomar conta dos botões mágicos exclusivamente, assim Antonieta conseguiu seu primeiro emprego como um favor do Seu Carlos a Tia Helena. Um desperdício de salário mínimo mensal. Quem precisa de uma mulherzinha tomando conta da máquina de cópias? Todos achavam o mesmo, menos Antonieta que era ingênua demais pra perceber que só estava lá porque também era um desperdício de espaço na casa de sua Tia Helena e o Seu Carlos não poderia lhe negar esse favor, todos na repartição também sabiam que eles tinham um caso, até Antonieta, mas preferia fingir que não sabia.
Antonieta foi morar com a tia em São Paulo de favor porque sua mãe achava que não havia futuro pra ela na pequena vila de São Miguel no Mato Grosso. Ela tinha conseguido terminar o colegial com muitas dificuldades, mas não passaria disso morando naquele fim de mundo e o sonho de sua mãe era que Antonieta fizesse faculdade, nem importava do que, contanto que ganhasse um diploma e fosse chamada de Doutora. No fim das contas já faziam 12 anos que Antonieta morava em São Paulo com a tia. Sua mãe morreu um ano depois que ela partiu de São Miguel com uma doença transmitida por mosquitos e Antonieta não tinha mais motivos pra querer fazer faculdade, ela nem sabia mesmo que profissão gostaria de ter. Morando com a Tia Helena, profissão não era um luxo com várias opções e sim uma necessidade dos famintos. Tudo que ela fazia em São Paulo era tirar cópias das 8 às 17h, tomar chá de cidreira às 14h30min, ir à igreja aos domingos e ajudar a tia com os bordados. Ela nunca usou saias acima do joelho e também nunca usou uma calça jeans, era seu sonho secreto, ter uma calça jeans, mas sua tia dizia sempre que era pecado. Com trinta anos de idade não se podia dizer que Antonieta era uma mulher, parecia mais uma menina de vinte anos, não era bonita contudo, era pequena e sua postura a escondia mais ainda, sempre de cabeça baixa, braços se agarrando ao corpo magro, abaixada pegando papéis que sempre caiam no chão quando alguém se aproximava da copiadora e nunca tinha sido tocada por um homem. Uma vez quando era mais moça uma prima sua da capital, toda moderna de calça, brincos e tinta no cabelo lhe deu um beijo na boca quando a cumprimentou. Antonieta ficou uma semana sem sair do quarto, rezando e pedindo perdão pelo imenso pecado. Ela tinha gostado.
A Tia Helena era rigorosa e cruel, Antonieta já tinha se acostumado, agora que sua mocidade fora embora nem se preocupava mais em sair de casa ou procurar algo mais empolgante pra fazer com a vida, achava que devia ser muito grata pela tia sempre ter cuidado dela e nunca tê-la deixado passar fome. A Tia Helena era uma grande sortuda na vida, um gringo em expedição ao Pantanal se apaixonou por ela e a levou pra morar em São Paulo, era podre de rico e morreu atropelado por uma manada de búfalos quando estava em expedição na África do Sul, Tia Helena ficou com a bolada em dinheiro do falecido e era a viúva mais bonita e rica que Antonieta conhecia, não que conhecesse muitas. Mas a tia era ranzinza e nunca lhe dera nada além de comida, blusas e polainas que era capaz de bordar. Ninguém mais as queriam. Passava o dia lamentando a morte do marido que tanto amava, obrigando Antonieta a rezar e pedir perdão por tudo que dizia, porque pra Tia Helena tudo era blasfêmia e pecado, nunca admitia que Antonieta lesse livros que não fossem de religião e também não a deixava ver televisão, achava que tudo mancharia a inocência da menina-mulher com luxúria e ainda reclamava pelos cantos de não ter mandado a menina pro convento logo que chegou em São Paulo, seria mais útil servindo a Deus do que tirando cópias. Mal sabia ela que Antonieta ouvia suas risadelas e sabia muito bem o que ela fazia todas as quintas quando o Seu Carlos passava a noite trancado no quarto da viúva.
Por essas e outras da vida que Antonieta se tornou desde jovem uma pessoa extremamente depressiva. Com uma rotina programada, sem sorrisos, amores, amigos ou qualquer outro pecado que ela sabia que seria bom ter. A sua única distração era um livrinho intitulado ‘As virtudes de Sabrina’ que continham alguns detalhes picantes e ela conseguira roubar do quarto da tia há seis anos e desde então lia todas as noites, conhecia os diálogos de cor. Gostava de olhar pra janela e admirar a paisagem cinza, os prédios, as pessoas andando nas ruas, mas naquele fim de março chovia todos os dias por volta das 17h, bem quando ela estava prestes a sair no trabalho. Então outra frustração em sua vida, a rotina de saber que vai chover às 17h. Ela além de tudo sabia que iria morrer enforcada em seu pequeno quarto de cama e cômoda quando não suportasse mais a solidão e os chazinhos de erva cidreira.
Mas naquele dia, uma funcionária da repartição chamada Cecília, loura, jovem e extrovertida mudou pra sempre a rotina de Antonieta. Eram 14h25min quando Antonieta desligou a máquina de cópias e desceu as escadas até a pequena cozinha pra tomar seu chá. Diferente dos outros dias que nesse horário tinha a cozinha sempre vazia, estava lá um grupinho de funcionários, entre eles a Cecília, que era o xodó de todos e a funcionária do mês, tinha seu retrato na entrada da repartição, ela era bonita e usava calça jeans. Antonieta parou na porta da cozinha e os olhos se voltaram pra ela, como se fosse uma intrusa que não foi convidada a entrar no círculo, baixou os olhos assustada por ver tanta gente e resolveu voltar mais tarde, mas nesse momento Cecília se virou pra ela com os olhos azuis que mais pareciam duas bolas de gude gigantes e os olhos de Antonieta olharam aqueles olhos meio que sem querer, foi um momento tão rápido e durou milésimos de segundos mas foi o bastante pra fazer Antonieta estremecer e sentir o tempo parar, ela tinha medo de olhos. Ela deixou a pasta de papéis que carregava junto ao corpo cair e espalhar cópias pra todo lado enquanto os funcionários da roda davam risadas e comentavam a capacidade da ‘moça da copiadora’ ser tão atrapalhada. Cecília se abaixou para ajudar a recolher os papéis e derramou café na saia bege na altura das canelas de Antonieta. Foi mais um estardalhaço. Sabe essas cenas que são extremamente bobas e rápidas mas na cabeça de algumas pessoas podem levar eternidades pra passar? Então, foi assim e era a cabeça depressiva de Antonieta. Cecília pedia mil desculpas e tentava limpar a saia e pegar os papéis, tudo ao mesmo tempo enquanto Antonieta simplesmente dizia baixinho que não tinha problema e continuava baixando os olhos.
- Vem, eu tenho uma mochila de roupas no armário, vou te emprestar algo.
- Não precisa, eu fico assim mesmo, ninguém vai perceber.
- Eu derramei café na sua saia bege, como acha que ninguém vai perceber?
- Normalmente ninguém me percebe.
- Você só pode estar louca, vem, vou te emprestar algo e não aceito não como resposta.

Na mochila de Cecília inacreditavelmente tinha de tudo, maquiagem, toalha de banho, secador de cabelo e um conjunto de roupas, ela tirou uma calça jeans e entregou a Antonieta.
- Eu não posso vestir isso.
- Isso se chama calça.
- Eu não posso vestir calça.
- Por que? É evangélica? É só por um tempo.
- Não. Minha tia diz que é do demônio.
- Em que mundo você vive mulher? Veste logo essa calça, sua tia nem ta aqui. Eu hein, tem cada gente louca nesse mundo. Quantos anos você tem?
- Trinta.
- E nunca vestiu calça?
- Não.
- Só falta você me dizer que também nunca namorou.

...

Antonieta vestiu a calça como se estivesse participando de um ritual sagrado, estava sendo batizada pela vida, estava aprendendo a viver, a sentir um tecido envolvendo suas pernas e marcando suas curvas. Aquilo era incrível pra ela, e por segundos ela conseguiu esquecer dos pecados e de pedir perdão por tudo.
- Ta vendo, ficou boa, você devia aderir o modelo... é... qual é o seu nome mesmo?
- Antonieta.
- O meu é Cecília, prazer, é nova aqui?
- Estou aqui a 10 anos.
- Jura? E como eu nunca te vi?
- Trabalho na copiadora.
- Ah, claro, a moça da copiadora né? Como pude me esquecer?
- As pessoas esquecem.
- Então você tem um nome, já é alguma coisa. Consegue dizer uma frase que com mais de três palavras ou será que falar também é proibido pela sua tia?
- Por que você tem uma mochila com roupas e maquiagens no trabalho?
- Ora mulher, a gente nunca sabe quando vai precisar dar um tapa no visual, to sabendo que a qualquer hora vai pintar o pessoal da consultoria, já viu um gato que ta sempre de gravata roxa com eles? Então, to tentando impressionar.
- Não.
- Não o que mulher?
- Não vi o gato.
- Ah, esquece. Olha só, amanhã você me devolve a calça ok? Vou voltar pro trabalho. Ah, tira uma cópia desse documento pra mim? Valeu.

Demorou ainda alguns segundos pra cair a ficha de Antonieta. Ela voltou pra máquina de cópias de calça jeans, emprestada pela funcionária mais bonita e mais popular da repartição. Será que isso significava que ela tinha uma amiga? Nunca tinha tido uma amiga antes, não dá pra saber a definição do que é ou não é uma amiga. Se lembrou que não tinha tomado o chá e decidiu descer novamente até a cozinha, que enfim estava vazia. Ela tinha uma calça jeans no corpo, talvez uma amiga, e decidiu então que naquele dia iria tomar café de verdade, chega de chá, e tomou mesmo, uma xícara, depois mais uma, gostou e resolveu tomar toda a garrafa térmica de uma vez. E daí? Ninguém estava vendo, e se ela teve a coragem de colocar calças, teria também de beber café. Café, café, café, café, alucinação, sorrisos. Ela então aprendeu a sorrir. Começou a chover mais cedo. Eram 15h e não 17h como todos os outros dias. Isso só podia ser um sinal de Deus pro renascimento de Antonieta. Primeiro veste calças, ganha uma quase amiga, bebe café e a chuva cai num horário diferente? Um milagre divino na cabeça da moça da máquina de cópias. E ela decidiu que não queria mais ser moça da máquina de cópias. Foi correndo a sala do Seu Carlos que ameaçou de contar pra viúva Tia Helena que ela estava de calças. Ela lhe ofereceu café, disse que é muito bom, e saiu pra não voltar mais. Na porta da repartição ela viu o retrato de Cecília no mural do funcionário do mês, então ela escreveu na sua testa um ‘obrigado’ com caneta permanente e saiu. Já no portão decidiu comemorar seu renascimento e sua falta completa de rotina e começou a dançar na chuva, no meio da rua, como uma pessoa realmente feliz que precisa mostrar pro mundo sua felicidade. O dia estava claro e a chuva caia calma, com os raios de sol envolvendo os pingos de água e deixando tudo dourado e quente. Como era bom sentir, sorrir, vestir o jeans, beber café, conversar, e se ela visse um gato poderia até andar por aí com uma mochila cheia de acessórios e batons como Cecília. E poderia arrumar outro emprego, morar longe da Tia Helena, poderia até fazer faculdade e ser Doutora como queria sua mãe, sim, fisioterapeuta é uma boa profissão, cuidar das pessoas, ver gente, conversar, usar calça jeans e ter uma cozinha com muito café no consultório, poder tomar banho de chuva sempre que quiser sem ninguém dizer que é pecado.
- Olha pela janela Cecília, não é aquela moça da máquina de cópias que você derramou café? Ela ta dançando na chuva.
- Minha nossa, e não é que é ela mesmo? Chama Antonia eu acho, bem que eu disse que ela era doida.
- Antonia? Quem diria, a moça tem um nome? Acha que a gente deve ir lá e tirar ela da chuva? Ela pode ser atropelada.
- Não, deixa ela, não sabe que loucura é contagioso?

Seu Carlos ligou para Tia Helena, que ligou pro amigo do hospital que conhece o dono do sanatório que foi com a Tia Helena resgatar Antonieta.

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